Sobre a Utopia

A utopia é impossível? Para que serve a imaginação?

Todo ato criativo traz em si uma utopia

Edson Luiz André de Sousa.

Quando falamos de utopia, não nos referimos ao senso-comum que associa a utopia ao impossível, a um delírio, ou um destino frustrado de antemão. A utopia não é um plano ou um destino: a utopia é o horizonte, a direção da caminhada (ou da navegada), a luz que nos orienta, a imaginação que esculpe o desejo e nos suga em sua direção para sermos cada vez mais semelhantes ao sonho. Ela nasce do presente, porque nasce da crítica ao presente e da imaginação que supre as faltas, e retorna ao presente, porque o desejo tem impactos sobre a subjetividade e inspira a ação. A utopia é portanto presente, real e ativa.

A palavra “utopia” nasceu com o livro clássico de Thomas More, publicado pela primeira vez em 1516. Ele descreve, em detalhes, uma Ilha imaginada, chamada “Utopia”, onde se pratica uma forma de governo diferente de todas as outras do mundo e melhor que todas elas. Lá, não existe propriedade privada e nem circulação de dinheiro, por exemplo. Embora a Ilha de Utopia seja imaginária, ela trata de problemas reais da sociedade da época e é a partir deles que o autor desenha uma sociedade ideal, em que aqueles problemas estariam resolvidos. Assim, a utopia constitui um exercício de imaginação que parte da crítica ao presente e abre janelas para conceber possibilidades alternativas. O nome Utopia vem do grego: “ou + topos”, “lugar nenhum”, ou “eu + topos”, “lugar feliz”. (Leia mais sobre a Utopia de Thomas More na nossa biblioteca).

Situada no horizonte, a utopia é o desejo mais ousado, mais absoluto. A melhor imagem que a imaginação seja capaz de criar. O ponto máximo até onde a imaginação é capaz de levar o desejo, ou aonde o desejo é capaz de fazer estender a imaginação. Tal imagem do desejo nasce aqui e agora, e é lançada ao horizonte; do horizonte, rebate sobre o olhar, e altera a postura diante do presente.

Como pareceria o mundo ideal? Que problemas de nossa sociedade gostaríamos de eliminar? Qual é a melhor sociedade que podemos imaginar?

A utopia é uma provocação. Ela provoca o pensamento, a imaginação, o status quo. Surge de um olhar crítico sobre a sociedade, junto ao desejo de criar outra coisa. Tem a função de causar contrafluxo: a utopia busca sempre driblar o dogma, boicotar a inércia, pensar fora do que está dado ao vislumbrar outras formas de vida e de organização social. A utopia não precisa ser um projeto (realizável ou não), ela é, antes de mais nada, uma abertura, um convite para imaginar. A capacidade de imaginar multiplica possibilidades, instiga quem imagina, move o sujeito e transforma a realidade. Se imaginamos uma vida mais bela, mais pacífica, mais potente, poderemos ir nessa direção, agindo de acordo com o que imaginamos. Não sabemos, ainda, o que será, na prática, possível ou impossível. É questão de experimentação. Mas, quanto à utopia em si, seria o mesmo que perguntar: a imaginação é possível?

A filósofa Carla Ferro comenta: “A utopia me parece ser, aí, não mais uma utopia estatal que faz apelo a um melhor funcionamento da nossa organização social, mas uma utopia imanente, uma zona de instabilidade onde uma maior diferença de energia potencial causa uma perturbação na ordem dos fluxos e das interações. O impossível se revelaria, assim, uma espécie de nascente de novos possíveis. No limite deste mundo que conhecemos”.

Na visão do psicanalista Edson Luiz André de Sousa, “Um pensamento sobre a função da utopia vem, portanto, provocar a imaginação a abrir outros caminhos possíveis ao pensamento para que não fiquemos paralisados na obscuridade do instante. A utopia tem a importante função de resistir aos imperativos do consenso que cada vez mais o laço social nos impõe”.

Uma sociedade incapaz de imaginar tende à estagnação e à falência. Essa é uma das faces da crise múltipla que o mundo hoje enfrenta. O tempo atual é particularmente exigente de utopias: se não mudarmos nossa forma de organização social, experimentaremos uma catástrofe ecológica profunda, à qual a espécie humana talvez não sobreviva. Precisamos reinventar nossas formas sociais, políticas, econômicas, afetivas, subjetivas, energéticas… Que rumo tomaremos? Comecemos já!

Outros jeitos de viver são possíveis? Que outros jeitos de viver já existem? Como outras sociedades, em outros tempos ou em outros lugares, organizam suas vidas?

Imaginar a utopia é imaginar o diferente. Assim, muitas vezes, aspectos da utopia de uma sociedade podem assemelhar-se a aspectos concretos de outra. A forma de viver que uma sociedade conhece nunca será a única forma possível, e as possibilidades da realidade se multiplicam à medida que a imaginação se alimenta de experiências vividas em outros lugares ou tempos. Para ser desenhada, a utopia interroga tudo o que encontra, pesquisa alternativas e faz da curiosidade, matéria-prima.

Entre inspirações: sociedades indígenas de diversas etnias e origens (Guarani, Yawanawa, Aymara, Quéchua, e centenas de outras) podem inspirar a utopia com relações equilibradas com a natureza e com a biosfera, bem como na constituição da vida comunitária como um tecido de confiança e reciprocidade. A tradição budista inspira o cultivo da utopia a partir da mente: uma “prática de si” (como diria o filósofo Michel Foucault) dedicada a lapidar uma subjetividade benéfica aos outros seres. Também comunidades animais, vegetais e minerais têm a nos ensinar: observemos o equilíbrio típico da inteligência da natureza entre os diversos elementos que a compõem – e que nos incluem. Bem-viver, o comum, o pluriverso, a metamorfose, e tantos outros conceitos e práticas podem nos ajudar a conceber a vida de outros modos e a imaginar mundos mais justos, saudáveis e solidários. (Aprofunde-se nessas e em outras inspirações em nossa biblioteca).

Notemos: inspirar-se em outras sociedades não significa tomá-las como modelos de perfeição. Cada sociedade tem falhas e conquistas; a vantagem da imaginação é sua liberdade de misturar e de criar. A própria utopia, enquanto tal, nunca é perfeita – sendo uma criação humana, está sujeita a limites e a erros. Seu valor é o do exercício crítico e criativo, a partir daquilo que sabemos, até o limite do que podemos imaginar. Misturando tudo o que conhecemos, de que sonhos somos capazes?

E o que exatamente são “experiências utópicas”?

Experiências utópicas são aquelas que levam a utopia a sério e começam a transformá-la em fato.

Se a utopia é o horizonte, a experiência utópica é o passo que caminha em sua direção. Práticas utópicas são aquelas em que a ação é direcionada por aquilo que se acredita ser o mais desejável. Coletivos, comunidades, redes, movimentos sociais que demonstram diversas maneiras de organizar-se, de produzir, de trocar, de se movimentar, de construir, de educar… Por exemplo, o Banco de Tempo é um banco em que em vez de se usar o dinheiro como moeda de troca, usam-se horas. Se você oferecer uma hora de aula de piana, você ganhará uma hora na sua conta. Você pode usá-la para adquirir uma hora de massagem, ou uma hora de baby sitter, ou um pão! E este é apenas um exemplo entre as muitas boas ideias que estão espalhadas por aí.

Esse tipo de experiência demonstra alternativas para algumas das convenções mais arraigadas da sociedade ocidental, como dinheiro, hierarquia, autoridade, opressão, exploração, razão e progresso. Em lugar desses valores, entram dinâmicas de solidariedade, comunalidade, cooperação, complementaridade, reciprocidade, afeto e cuidado. Ao evitar o dogma, a utopia demonstra a vastidão do possível e o infinito que existe fora do que está dado.

Qual a relação entre utopia e pensamento?

Assim como a utopia perfura a aparente solidez da realidade social, também perfura o tecido do pensamento de quem a imagina. A utopia é a potência daquilo que é externo, estranho, que leva o pensamento ao limite de si mesmo. Nas palavras de Fredric Jameson: “a vocação da utopia é o fracasso, o seu valor epistemológico está nas paredes que ela nos permite perceber em torno de nossas mentes, nos limites invisíveis que nos permite detectar por mera indução, no atoleiro das nossas imaginações no modo de produção. Concluímos, portanto, que a utopia mostra aquilo que não podemos imaginar”.
Pensar a utopia é esticar, distender e transformar o próprio pensamento que a pensa. Vamos?